…e hipócritas. Nunca temos culpa de nada. Custe o que custar, procuramos – e encontramos sempre – algum bode, ou até mesmo uma cabra, que expie a nossa cobardia. Levamo-lo(a) para o cepo e zás, lá vai a cabeça a rolar pelo chão com os caracóis ensanguentados e os olhos abertos, a brilhar, sem pestanejo, que, depois de morto, só o pensamento fica e o espírito assombra. E como assombram os espíritos inocentes que vagueiam por entre a multidão, em salas e pretensos salões onde os egos e o inchaço da presunção mal têm espaço. Ocupantes de tez bronzeada e nó de gravata feito em volta simples, torto, mas fácil de desfazer, não vá ser preciso dar um ar de descontraído, sem tirar o casaco, e desmanchar o personagem criado ao longo de anos, com narrativa alternativa, cuidada, pretensamente incólume e ao gosto das primeiras páginas e dos distraídos.
Gostamos de esquinas, de um qualquer canto escondido na sombra e de ficar de costas para a porta do café, não vá alguém que (não) interesse identificar-nos e perdermos a oportunidade de lhe repetirmos a mesma conversa, agora condimentada com os novos dados, no momento mais oportuno que poderá ser já daqui a instantes, mal entremos no carro e ninguém perceber que temos o telemóvel mesmo ali à mão. Colocamos na boca do outro as palavras que não temos coragem para assumir e dizer, mas ficam ditas. “Ouvi dizer…” Ao sabor dos nossos interesses, jogamos este jogo de sombras e tentamo-nos ir safando por entre os pingos da chuva. Umas vezes safamo-nos, outras não. Alguns, sempre. Tudo depende do grau e da capacidade camaleónica de cada um.
O olfato desempenha um papel central neste sistema de “hipocobardia”. Entenda-se que o prefixo “hipo” é aqui usado como derivante de “hipocrisia” e não como qualquer correlação à nobre família equídea, sendo certo que os coices abundam e que a expressão “albarda-se o burro/cavalo à vontade do dono” constitui um dos mandamentos fundamentais da Lei deste Deus. Se hoje és cavalo, facilmente te transformas em burro. Para tal, basta que na baia ao lado o cheiro for mais apelativo e der mais garantias, mesmo que não passes de moço de estrebaria e te limites a segurar o estribo para que outro alguém monte o corcel. Felizmente, o inverso também é possível, passar de burro a cavalo. São as vantagens da democracia e deste sistema de mobilidade entre castas que funciona na perfeição. Ainda bem!…
Hoje, somos amigos do Manuel. O maior que o mundo alguma vez viu e amou. Ele é como nós. Um nosso igual. Dou a vida por ele. Os ventos mudam e o José posiciona-se para liderar o concurso. Tudo indica que vai ganhar a contenda. Nunca se passou a dizer tão mal do Manuel como até agora, dizendo dele o que nunca diríamos de nós, e o José, esse fenómeno da Natureza, nascido para ser um vencedor, é colocado num altar. Um Deus. Um ídolo.
Certo dia, o José esquece-se de fazer “gosto” numa publicação nas redes sociais. José torna-se um alvo a abater. Eu sempre disse que o gajo não valia nada. O Manuel, esse sim, é que é um homem às direitas. Sempre estive do lado dele. O Manuel não tem Facebook. Não tem como partilhar fotografias de grupo onde identifica os amigos. O João tem e com muitos seguidores. Grande amigo.
As cabeças de José e Manuel – os culpados de tudo – estão agora no cepo. João anda de jantar de Natal em jantar de Natal com os amigos do José, inimigos de Manuel, e com os amigos de Manuel, inimigos de José, agora, amigos uns dos outros.
Sempre fomos grandes amigos.
Artigo publicado na edição de hoje do Diário Insular.