
Eu ainda sou do tempo em que, nas Lajes, havia sessões de cinema nas duas sociedades. Sou do tempo em que as sociedades estavam abertas todos os dias, todo o dia, e as pessoas – principalmente os homens – as frequentavam.
Sou ainda do tempo em que arranjar lugar para ver o Carnaval nos dois salões era tarefa difícil e as mulheres se sentavam com os filhos na plateia, mesmo que chorassem muito, e os homens iam para o sótão. Era o lugar deles.
Sou do tempo em que a rua principal da freguesia, embandeirada, com faias a enfeitar os mastros, tapetes de flores e as varandas e janelas decoradas com colchas coloridas, se enchia para ver passar a procissão do Rosário e que a festa do Carmo se realizava por detrás da igreja.
No tempo em que, ainda muito jovem, com chuva ou com sol, se assistia às touradas à corda que se realizavam só na segunda, na terça e na quarta-feira e a festa terminava aí. Sou do tempo em que o Bodo de Leite eram dois. Havia as duas pontas, numa rivalidade que só os lajenses compreendiam e que o futebol, depois de ser amarelo, e antes de voltar a ser amarelo novamente, se vestia dividido em azul e vermelho.
Mas também sou do tempo em que os dois clubes se juntaram e se tornaram um só, o Juventude de hoje. E do tempo em que um só cortejo de Bodo de Leite começou a percorrer a rua principal da então freguesia em dia feriado, mais tarde de tolerância-de-ponto e hoje um dia como outro qualquer.
Sou do tempo em que aquilo que estava dividido se uniu e do outro em que, depois de unido, se tornou mais forte e melhor.
A Vila das Lajes, apesar da sua dimensão, tem tido a capacidade de, ao longo dos séculos, no seu território da banda de cá da pista, manter um único Império do Espírito do Santo. A sua força é, aliás, manifestada pela grandiosidade da sua Despensa que bem atesta a fartura das suas terras e a solidariedade das suas gentes.
Contudo, neste tempo de agora, urge pensar a possibilidade de união das duas únicas instituições que permanecem divididas, embora sirvam o mesmo propósito e, ao seu modo, prestam o mesmo serviço à comunidade.
De ano para ano os problemas vão-se repetindo e adensando. É cada vez mais difícil arranjarem-se direções. É cada vais mais difícil manter-se a porta aberta de forma permanente durante todo o ano. É cada vez mais difícil a sua sustentabilidade financeira.
Sei que este não é um tema fácil, nem uma situação simples de resolver. Em todo o caso, fazer desta uma situação tabu é tapar o Sol com a peneira. A união faz a força e fundir as duas sociedades lajenses numa só deverá ser o caminho a seguir ou, pelo menos, a explorar, discutir e conversar.
O Carnaval de 2020 correu como correu, tal como o início deste ano foi atrapalhado para ambas as instituições. Pior, seria só mesmo o seu encerramento em definitivo o que, pelo andar da carruagem, não é cenário impossível.
Este será então o momento para deixar de lado orgulhos, vaidades, bairrismos e coisas de antigamente. Falam-me das instalações, do património e de que salão receberá danças. Isso virá depois. Para já, o importante é arregaçar as mangas e revitalizar a vida da comunidade, unindo esforços, ganhando dimensão.
A Vila do Porto Judeu consegui-o. Por que razão a Vila das Lajes não o conseguirá?